Seleção e tradução de Francisco Tavares
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Entre a derrota e a escalada
Um ano depois do atentado do Nord Stream, a unidade do bloco ocidental é muito menos firme do que se pretende que é
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em 26 de Setembro de 2023 (original aqui)

As guerras estão expostas a todo o tipo de reviravoltas inesperadas, mas na sua atual fase a derrota militar da Ucrânia é cada vez mais clara. Como é a resposta dos patrocinadores ocidentais de Kiev: fornecer mísseis de longo alcance, capazes de atingir a Crimeia e que colocam ao seu alcance as cidades russas.
Hoje perfaz um ano o atentado que fez explodir o gasoduto Nord Stream no Báltico. Com a distância de um ano, o facto de que os Estados Unidos atentassem contra um interesse estratégico da Alemanha, seu principal aliado na Europa, continua a parecer um dos dados centrais do conflito da Ucrânia. Embora a situação seja dissimulada não sendo exteriorizado o sofrimento por ela causada, aquele atentado teve um efeito demolidor sobre a liderança dos Estados Unidos na Europa Ocidental. Prejudicou gravemente a economia alemã e disse muito sobre a fragilidade da coesão interna da NATO; sobre até que ponto a organização militar liderada pelos Estados Unidos no continente manda sobre a União Europeia, seu braço político subordinado. O silêncio dos que foram afetados por aquele acontecimento, sobretudo dos humilhados políticos alemães, assim como a colaboração dos seus serviços secretos e dos seus meios de comunicação nas grotescas e diversas cortinas de fumo lançadas pela CIA para dissimular e despistar a simples realidade sobre a autoria de tudo aquilo, também contribuem muito bem para desenhar o panorama que temos diante de nós.
Esse panorama é determinado e dominado pelas eleições presidenciais do ano que vem nos Estados Unidos. Esse país é a única potência capaz de forçar a paz, mas todos os ingredientes e circunstâncias que rodeiam essas eleições apontam antes para uma dinâmica de guerra; isto é, para a escalada do conflito aberto na Ucrânia e o aprofundamento do conflito latente no leste asiático. Vejamos.
À frente da pirâmide temos um presidente senil, Joe Biden, sobre o qual os media teriam encenado uma grande pândega se fosse um chefe de Estado russo ou chinês. Em caso de incapacidade, Biden tem ao seu lado uma Vice-Presidente, Kamala Harris, que brilha por sua incompetência. Na segunda linha, um trio de desmiolados com nível de bolseiros à frente do dossier ucraniano: o secretário de Estado Blinken, o conselheiro de Segurança Nacional Sullivan e a subsecretária de Estado Nuland. Este deficiente pessoal está, por sua vez, mergulhado na mais dura e espetacular luta interna do establishment de Washington desde a guerra civil, que inclui cruzamento de ações judiciais destinadas a colocar na prisão o candidato adversário. Ambos os lados se criminalizaram mutuamente e estão firmemente convencidos de que, se perderem as eleições, serão julgados, e por isso não podem perdê-las. Somada à possibilidade de uma recessão, essa pressão poderia transformar o cenário de uma guerra aberta com a Rússia no grande recurso de sobrevivência do governo Biden.
O jornalista trumpista Tucker Carlson, que a crise do establishment transformou em popular dissidente rebelde, resume a situação assim: “Já perdemos o controle do mundo, agora vamos perder o controle e o domínio mundial do dólar, e quando isso acontecer teremos pobreza ao nível da Grande Depressão. Já estamos em guerra com a Rússia, financiamos e armamos os seus inimigos, mas podemos ir para uma guerra direta, poderíamos fazer um ‘Golfo de Tonkin’ na Polónia (o falso incidente fabricado para justificar a intervenção no Vietname) e dizer que foram ‘os russos que fizeram isso'”.
No campo de batalha, as coisas não podem piorar para a Ucrânia. O milagre voluntarista de uma contraofensiva em condições de inferioridade numérica, de artilharia e aérea não funcionou, como previram os especialistas russos, com a maior seriedade e sem jactância alguma, desde antes do verão. As armas milagrosas ocidentais que tanto custou fornecer são mostradas a arder todas as noites nos telejornais russos (os soldados recebem grandes prémios por destruir os blindados Bradley, Stryker, Leopard, Challenger AMX-10 e outros). O mais terrível que aconteceu foi uma terrível e irreparável carnificina que parece impossibilitar, por falta de pessoal, uma nova ofensiva ucraniana na primavera (enquanto o exército russo dispõe de uma reserva de 300.000 homens que ainda não atuaram) e anuncia o afundamento militar ucraniano. Isso torna cada vez mais provável algum tipo de golpe militar em Kiev que afaste Zelenski e os seus do poder, imponha o realismo e aceite grandes perdas territoriais que poderiam ter sido evitadas em dezembro de 2021 se então tivesse havido outra atitude.
No início de setembro, as fontes mais confiáveis estimavam entre 240.000 e 400.000 as baixas ucranianas no conflito, e que triplicam as baixas russas (80.000 mortos em meados de setembro segundo a BBC). Esta incerta estimativa geral encontrou a sua concreta confirmação de caráter local nas declarações do chefe de recrutamento da região ucraniana de Poltava, Vitali Berezhni: “de cada cem pessoas mobilizadas no outono passado, restam entre dez e vinte, o resto estão mortos, feridos ou incapacitados”. Em Poltava, o plano de recrutamento só foi cumprido em 13%, disse o funcionário, enquanto o seu homólogo em Lvov reconheceu em agosto que apenas um em cada cinco chamados comparece às fileiras.
A fuga é generalizada. A guarda fronteiriça ucraniana diz ter evitado a fuga do país de mais de 20.000 recrutas, e o pedido do governo de Kiev para que se deportem os mais de 650.000 ucranianos em idade militar registados na UE como refugiados é de difícil aplicação. Nas missões diplomáticas da Ucrânia no exterior, entre 40% e 60% dos funcionários não retornaram ao país após a conclusão da sua estada. Dos vinte que deveriam regressar da Embaixada nos Estados Unidos no ano passado, apenas um voltou e, em algumas embaixadas, ninguém regressa. Esta realidade de carnificina e fuga aparece de vez em quando na imprensa inglesa há um ano, mas na imprensa da UE e na nacional continua a ser rara, apesar de ser fundamental para definir a situação.
Neste contexto, sobem de tom as exigências e recriminações das autoridades ucranianas para com os amigos europeus. O cansaço perante o poço sem fundo e sem resultados do esforço financeiro e militar europeu apareceu na campanha eleitoral polaca, apimentado pelo desacordo em torno da exportação de cereais ucranianos para a Europa. O presidente Duda comparou a Ucrânia a um homem que se afoga e pode arrastar para o fundo quem tentar salvá-lo. O primeiro-ministro, Mateusz Morawiecki, disse que deixará de enviar armas para a Ucrânia e que as que comprarem novas serão para armar-se eles, os polacos. Um porta-voz do governo de Varsóvia anuncia que o apoio aos refugiados não será prorrogado no próximo ano, o que abrange “isenção de registo de residência e permissão de trabalho, acesso gratuito à educação e assistência médica e familiar”.
Até ao momento, os ucranianos refugiados na Europa Ocidental “comportaram-se bem” e estão “muito agradecidos” a quem os acolheu, não esquecerão essa generosidade, disse Zelenski em entrevista ao The Economist, mas “não seria uma coisa boa para a Europa se essas pessoas fossem encurraladas”, acrescenta no que parece uma ameaça velada de desestabilização.
Com o exército ucraniano esgotando as suas reservas e o fluxo de armas e munições ocidentais diminuindo, a solução foi dar um novo passo no jogo de riscos: fornecer mísseis de longo alcance britânicos, franceses e americanos (os alemães ainda estão a pensar) capazes de atingir cidades russas. Os ataques com esses mísseis à Crimeia foram possíveis graças à informação e tecnologia de localização e inteligência americana e britânica. Tudo isso são incentivos para que a Rússia amplie a sua ocupação territorial ao resto da costa ucraniana do Mar Negro, chegando até Odessa e à fronteira romena, e inclusive para responder com ataques a alvos da NATO, para o que Moscovo parece ter sobrada capacidade de mísseis. Citando fontes dos serviços secretos dos Estados Unidos, o jornalista Seymour Hersh aventura que atacar alvos da NATO era o que pregava o insurgente chefe da Wagner, Evgeni Prigozhin, e que por isso foi eliminado. Quem sabe, mas a prudência do Kremlin está, em todo o caso, a ser submetida a um teste de risco que não cessa de aumentar.
Os responsáveis ocidentais continuam empenhados em demonstrar [afinal] a narrativa russa sobre a guerra da Ucrânia. Em 7 de setembro, perante o Parlamento Europeu, o eloquente Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, disse que “Putin foi à guerra para impedir mais NATO perto das suas fronteiras”, e que se a NATO e os Estados Unidos tivessem aceitado as condições que o Kremlin formulou em dezembro de 2021, não teria havido invasão da Ucrânia.
Stoltenberg também reafirmou o que o chefe do Stratcom (Comando Estratégico) dos EUA, Charles Richard, já dissera em novembro de 2022 sobre a guerra da Ucrânia como “pré-aquecimento” para a guerra contra a China. Se a Ucrânia for bem-sucedida, isso permitirá que os EUA se concentrem na China, disse Stoltenberg este mês. “Se os Estados Unidos estão preocupados com a China, é necessário que a Ucrânia vença. Se Kiev vencer, teremos o segundo maior exército da Europa e será mais fácil concentrarmo-nos na China e menos na situação na Europa”. Seja como for, a situação na Ásia Oriental é inequívoca.
O Japão dobrou os seus gastos militares e relegou o artigo 9º anti-guerra da sua constituição para segundo plano. Oriundo de uma família de Hiroshima, embora nascido em Tóquio, e com familiares mortos pela bomba atómica, o primeiro-ministro, Fumio Kishida, celebrou em maio obscenamente nessa cidade o último conclave guerreiro do G-7 sem a menor alusão a quem foi quem lançou a bomba. Na Coreia do Sul, o presidente ultra, Yoon Suk-yeol, também é um ferrenho militarista que quer armas nucleares americanas implantadas no seu território (até agora suspeitava-se da sua existência apenas “em armazém”) e recebe toda uma flotilha com porta-aviões nucleares nas suas águas. A Coreia do Norte continua com os seus periódicos lançamentos demonstrativos de mísseis e alcança novos acordos militares com Moscovo. Nas Filipinas, os Estados Unidos estabelecem quatro novas bases militares e a Austrália gasta milhares de milhões em novos submarinos nucleares contra a China. Até a Nova Zelândia foi incapaz de resistir e anuncia aumentos nos seus orçamentos militares. O ex-primeiro-ministro australiano Paul Keating resumiu assim o panorama: “Os europeus têm lutado entre si a maior parte dos últimos trezentos anos, incluindo duas guerras mundiais no último século. Exportar esse veneno maligno para a Ásia equivale a dar as boas-vindas a essa praga”. O Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, “é um tolo que se comporta como um agente americano em vez de atuar como líder e porta-voz da segurança europeia”, disse Keating.
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O autor: Rafael Poch (1956-) foi correspondente de La Vanguardia durante vinte anos em Moscovo (1988-2002) e Pequim (2002-2008). Depois foi correspondente em Berlim, de 2008 a 2014. Nos anos setenta e oitenta, estudou história contemporânea em Barcelona e Berlín Oeste, foi correspondente em Espanha de Die Tageszeitung, redator da agência alemã de imprensa DPA em Hamburgo e correspondente itinerante na Europa de Leste (1983 a 1987). Autor de vários livros; sobre o fim da URSS (traduzido em russo, chinês e português), sobre a Rússia de Putin, sobre a China, e um pequeno ensaio coletivo sobre a Alemanha da eurocrise (traduzido em italiano). Em janeiro de 2018 foi despedido de correspondente de La Vanguardia em Paris.


